segunda-feira, 6 de julho de 2009

Texto de Opinião Prof. Agostinho Almeida Santos (publicado n'As Beiras, 6/07/2009)

ENSINO MÉDICO E MEDICINA DO FUTURO



Há muito tempo que não escrevia um artigo de opinião. Que ousei publicar, semanalmente, há anos atrás. A razão desta ausência das páginas dos periódicos foi dupla. Primeiro, não tinha tempo. Ultimamente, não me apetecia.

Achei que era agora tempo de pegar outra vez na pena. Justamente por ter pena. Do estado a que se chegou no ensino universitário. Particularmente, o ensino da Medicina.

Reforma atrás de reforma! Estatutos e mais estatutos! Regulamentos sobre regulamentos!

E a qualidade? E o sucesso? E a preparação dos estudantes para as incontornáveis exigências da futura profissão?

Tudo parece estar assegurado.

Entram nas Faculdades de Medicina os estudantes mais bem classificados no ensino secundário. Mas serão os melhores? Quem avalia a vocação, o perfil psicológico, a capacidade de comunicação e até a destreza na resposta a situações inesperadas? NINGUÉM!

O “numerus clausus” aparentemente é muito severo. O que cria angústias, desilusões e desalentos.

O contigente de estudantes que o poder político autoriza a cursar Medicina em cada ano que passa é progressivamente crescente. A raiar o inadmissível. Porquê? Invoca-se a falta de médicos no País. Será verdade? Que estudos demonstram um ratio médico/habitantes inadequado em Portugal? Nenhum! O que está em causa, isso sim, é uma incorrecta distribuição geográfica. Por culpa de decisões políticas! Que permitem uma concentração injustificada e inadmissível de médicos nos grandes centros e nas grandes comunidades hospitalares.

Por força destas mediatizadas razões, o curso de Medicina tem em cada ano de escolaridade um número excessivo de estudantes, distribuídos por turmas pletóricas, resultantes de uma simultânea escassez de docentes. Por falta de verbas para ajustado recrutamento de professores universitários.

A qualidade pedagógica vê-se, nas circunstâncias, afectada. O ensino é teorizado. Os estudantes não contactam com pacientes. A relação interpessoal não existe. As avaliações de conhecimentos são adaptadas a procedimentos docimológicos centrados em respostas de escolha múltipla ou na selecção de proposições teóricas identificáveis como verdadeiras ou falsas. O desagrado é generalizado. A insatisfação manifesta. As injustiças podem acontecer. Os professores mais exigentes são postos em causa. Ainda por cima não é possível e desejável a avaliação contínua.

Os hospitais universitários ou centros hospitalares universitários pouco mais são do que nomenclatura. Com a recente empreserialização das instituições onde se deve ministrar o ensino da Medicina e a progressiva contenção orçamental, a aprendizagem na área das ciências da saúde envereda para uma via economicista, aliada a crescente desmotivação de profissionais que até gostam de ensinar.

O “milagroso” processo de Bolonha veio agravar ainda mais a situação. O licenciado em Medicina virou mestre, à custa de um trabalho escrito de fim de curso com o qual quase ninguém está de acordo. As adaptações dos créditos escolares às normas europeias vieram criar desconformidades nalgumas unidades curriculares destituídas de pendor globalizante e universalista. A pulverização de áreas de conhecimento excessivamente especializadas fizeram perder a visão generalista que deve presidir à formação médica pré-graduada.

Acresce que terminados os estudos universitários e assumida a responsabilidade da prática clínica ninguém se preocupa em conhecer o grau de satisfação dos profissionais formados na escola médica, as dificuldades encontradas no exercício da actividade assistencial quotidiana, os êxitos ou fracassos resultantes da preparação ministrada e dos conhecimentos adquiridos.

Urge, pois, protagonizar a mudança. Que tão apregoada é, mas que tarda em ver-se traduzida por reais progressos.

Os órgãos de decisão da Faculdade de Medicina têm de analisar muito bem a situação actual. Não para implementar uma nova reforma ou estabelecer um qualquer outro regulamento. Mas, para com experiência, coragem, determinação e sentido de responsabilidade auscultar os principais protagonistas do cenário actual e com todos eles estabelecer objectivos claros e desenvolver estratégias adequadas a uma formação correcta dos desejáveis futuros médicos. Será com eles que se há - de constituir, depois, a rede operacional de um sistema de saúde ao serviço dos cidadãos e, sobretudo, dos doentes e da qualidade da assistência que lhes é devida.

E nesta imperativa tarefa não se podem descurar determinantes que são já de hoje e que serão ainda mais ingentes amanhã. As alterações demográficas já evidentes, as novas e sofisticadas tecnologias ao serviço da Medicina, os elevados e incomportáveis custos financeiros dos modernos cuidados médicos em detrimento do raciocínio clínico, os comportamentos deontológicos conformes a princípios éticos universais, a vulnerabilidade e o criticismo de práticas e atitudes clínicas, a permanente vigilância colectiva do exercício da actividade médica são factores que têm de merecer toda a atenção por parte dos decisores das escolas médicas. No sentido de adequar as estratégias pedagógicas universitárias às necessidades e às aspirações dos cidadãos e impedir as demagogias políticas.

A Medicina de ontem, de cariz curativo e preventivo, já se transformou em Medicina preditiva e regenerativa. A transição para novos paradigmas das ciências da vida é irreversível. E os estudantes de Medicina de hoje serão os profissionais destas novas atitudes de amanhã. Numa sociedade que cada vez está mais atenta ao progresso e vigilante às práticas.

Esta a enorme responsabilidade daqueles que agora assumem o poder de decidir.

Na senda de um futuro que seja melhor, mais digno e justo e mais promissor.

Agostinho Almeida Santos